Chaves
Quem me conhece bem, sabe da minha extrema dificuldade em erguer-me dos lençóis às oito e meia da manhã em tempo de férias. Nestes casos, quando me apetece levantar-me cedo, obrigo, invariavelmente, o meu despertador a adiar a sua cantiga, por mais cinco minutos e por mais cinco minutos, até perfazer meia-hora depois. E assim, invariavelmente, os meus dias de lazer são compostos por sucessivos pequenos atrasos, em que alguma coisa fica para fazer amanhã. São férias, portanto, e eu gosto muito de dormir.
Seriam umas oito da manhã, quando a minha mãe entrou de passo acelerado no meu quarto, sem "bom-dia", a pedir-me a lupa que me ofereceu "porque dá sempre jeito". Revi lentamente os meus mapas mentais, e respondi que provavelmente estaria na terceira gaveta, ao mesmo tempo que ponderava se haveria de pôr um pé no chão para entender aquela agitação inesperada.
- Estamos trancados em casa! Não consigo sair de casa, nem ninguém vai conseguir! Os bombeiros agora só apagam fogos! Que nervos, tenho tanta coisa para despachar no serviço, e ainda vou ter de pagar um balúrdio!
- Mas como é que os bombeiros já não abrem portas?
- Sei lá! Não sei porquê, só sei que agora têm de chamar a polícia, e dizem que não podem vir assim sem mais nem menos, não sei! Sei que não consigo sair de casa e tenho de chamar as chaves do areeiro!
- Mas o que é que se passa mesmo com a porta?
- Não abre! Isto cá em casa é só jeitinho, é cá umas mãozinhas! Foi o teu irmão que ontem à noite deixou a chave na porta e deve ter dado um jeito qualquer, que agora a chave nem se mexe, nem sai da porta, não percebo, que mãozinhas, meu deus!
Travei o meu humor que me surge nestas alturas críticas, e em vez de lhe explicar que as mãozinhas jeitosas que ela tanto praguejava, eram na realidade, obra-prima dela, inspirei-me nos filmes de acção americanos onde os heróis abrem sempre qualquer porta com um par de clipes. Tinha tudo ao meu alcance, até a lupa "que dá sempre jeito". Tentei averiguar o que se passava, enquando a minha mãe continuava a caminhar com os seus saltos desconcertantes, para a frente e para trás com uma neura maternal nunca antes vista.
- Pois! Isto da porta já devia estar mal! Sim, porque o teu irmão pediu-me clipes na semana passada, estou mesmo a ver, mas porque é que ele não disse logo que a porta não estava bem!...
As mães conseguem por vezes, fazer associações inexplicáveis, e quando dei por mim, o meu irmão arrastava as pantufas até nós, explicando que nada de extraordinário se passara na noite anterior, e que como era habitual, deixou a chave no trinco por causa dos assaltos.
Finalmente chegaram os senhores da chaves do areeiro, que nos pediram para nos afastarmos da porta. As marteladas ensurdeciam-me, mas a chave caiu, e a porta foi aberta.
- Bom dia! Explique-me lá o que é que aconteceu afinal?
- Oh minha senhora...isto, olhe...as chaves são uma cópia assim-assim, depois a porta com o calor descai, e isto já foi mais ou menos ao sítio. Temos que dar mais umas pancadinhas e volta tudo ao normal.
- Já agora...sabe-me dizer porque é que os bombeiros agora se mostram relutantes em vir abrir uma porta?
- Ah...isso é muito complicado....sabe que há muitas situações em que há casais que se separam, um põe o outro fora de casa, e há uns que não estão pelos ajustes, chamam os bombeiros, eles abrem as portas e depois é um ver se te havias.....ora se faz favor, aqui tem a facturinha....
Olhei para o papel e ainda ponderei pedir os óculos emprestados à minha mãe, porque martelar uma porta, custa a módica quantia de cinquenta euros! Os (maus) divórcios saem caros, sim, mas a toda a gente...
- Vá filha, adeus, a ver se ainda apanho os senhores para lhes dar uma gorjetazinha para a cerveja!
- Mas mãe...qual gorjeta....foram cinquenta euros....
- Sim, mas deve-se sempre dar uma atenção, e temos que ver que graças a eles, não fiquei trancada em casa...Até logo Nica.
(...)
- Então maninha, conseguiram?
- Sim...
- Mas olha...os clipes que eu tinha pedido, não foram por causa da porta, foi para abrir a drive dos cd´s do meu computador que encravou..."
- Pois mano...homem sofre...Olha vou aproveitar a alvorada, e dar uma volta por aí, queres vir?
- Sim, pode ser, também já não consigo dormir mais...
Retornei ao meu quarto, onde tentei recomeçar o meu dia, desta vez, de forma mais pacífica. Abri as cortinas, e qual não é o meu espanto, que em vez de ter um graffiti estupendo no muro em frente à minha janela, alguém decidiu deixar escrita por tempo indeterminado, a bela frase;
"Infelizmente, nem tudo corre bem"
Parece que hoje não.
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