sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Número 70 (2010)

Irmãos

Há dias passeava os olhos por uma revista e encontrei um artigo que falava sobre irmãos. O título inclusivé era, "A culpa é do Mano".
Entre muitas estatísticas e estudos sobre o assunto, a conclusão que me despertou mais a atenção - principalmente porque já o sabia, mas curiosamente nunca tinha pensado nisso - é que os irmãos influenciam a formação da personalidade uns dos outros. E fiquei a pensar em mim e no meu irmão. Em como é tão verdade esta afirmação e em como é tão estranho constatar que temos feitios tão, mas tão completamente diferentes.

Numas linhas mais abaixo era referido que segundo um estudo realizado por investigadores noruegueses, a conclusão era que os "filhos mais velhos têm em média um quociente de inteligência três pontos acima dos segundos filhos".
Penso que bate certo. Das coisas que melhor me lembro, era quando o meu irmão comia pastilhas elásticas. Ou melhor, quando comia o papel que envolvia as pastilhas elásticas e deitava a pastilha fora. E conseguiu persuadir-me a fazer o mesmo durante muito tempo, dizendo-me que aquele papel especificamente, fazia muito bem à saúde, e que eu tinha de o comer se quisesse ficar mais forte. Apesar daquilo não me saber nada bem, acreditei nele e fazia de conta que adorava. Ou se calhar ele percebeu precocemente, que eu já naquela altura era uma hipocondríaca em potencial desenvolvimento, e apanhou-me com o melhor argumento possível.

Uns anos mais tarde, de todas as vezes que fazia as minhas tentativas de convencer o meu irmão a brincar com as minhas Barbie´s, ele aguentava-se cinco minutos naquilo, e nem a compra do Ken o convencia a fazer-me o favor por mais tempo. Invariavelmente, puxava-me para o quarto dele para fazermos construções com legos. Eu ficava sempre maravilhada, porque o talento dele era algo fora de série. Normalmente ele reproduzia sempre a figura que vinha na embalagem, e depois de analisar cuidadosamente o potencial de cada peça, começava a desmontar tudo para dar lugar às figuras que habitavam a sua fértil imaginação. E eu, claro, comportava-me como uma verdadeira díscipula, atenta a todas as explicações. Como não revelava o jeito dele, quando chegava a minha vez de mostrar a sabedoria que ele transmitia, tentava persuadi-lo a construir casinhas com duas janelas e uma porta, em vez daqueles espectaculares aviões ou naves espaciais. Talvez tenha sido esta minha incapacidade que me fizesse olhar para ele como uma espécie de deus e admirá-lo como o meu único irmão favorito que era e que sempre foi.


Três colunas depois, surge a ideia posteriormente fundamentada que 50% dos irmãos mais novos são mais divertidos do que os mais velhos, porque "os mais novos têm de competir pela atenção dos pais, por isso, têm de ser menos convencionais. São, regra geral, mais criativos e rebeldes. Os mais velhos têm papéis mais sérios."
Bate certo outra vez. Hoje em dia o meu irmão levanta aviões do chão todos os dias, e eu demorei 28 anos para tirar a carta de condução.
Quando éramos miudos era o meu irmão que me acordava para irmos ver os desenhos animados da manhã, e eu ficava piursa se ele tinha a ousadia de me acordar mais cedo do que a hora da Família Robinson, ainda que fosse porque se aborrecia de estar sozinho. E quando queríamos algo dos nossos pais, deixava-o sempre ir fazer o pedido em primeiro lugar para aprender o que não resultava - sobretudo com o meu pai que sempre foi o mais dificil de convencer - para de seguida, pensar noutra solução mais engenhosa para dar a volta a questão.
Claro que foram precisos alguns aninhos de muitas tentativas falhadas e algumas de sucesso para apurar a minha criativa forma de chamar a atenção dos meus pais, que teve o seu verdadeiro apogeu na altura em que fiz dezoito anos.

Os nosso pais já estavam separados há muito tempo, mas a normal competição que todos os pais têm nestas situações, pela presença dos filhos, começou a deixar-me com os cabelos em pé, e enquanto o meu irmão resolvia as situações sempre de uma forma muito diplomática e com grande aceitação, eu debatia-me com algum nervosismo perante as cedências que tinha de fazer em contra ponto com as minhas vontades. Na altura do meu aniversário da maioridade tinha acabado de vir de Macau para estudar na Universidade em Lisboa, e o inicio das aulas iria coincidir com a minha data. O meu pai queria muito que eu fosse a Macau visitá-lo - ainda que tivesse saído de lá três semanas antes - porque era um aniversário muito importante, e depois de muitas conversas em que eu tentava explicar-lhe que não queria faltar ao inicio das aulas, que é quando a integração é mais fácil e se apanha o espirito do resto do ano, com os novos amigos e as disciplinas, e que podia ir lá no Natal, e que não me importaria de celebrar os meus anos mais uma vez passados três meses, a resposta dele foi que não havia volta a dar e que já me tinha enviado os bilhetes de avião.

Enquanto o meu irmão voltava a fazer as malas alegremente, eu zangava-me com os meus botões por ter sido ignorada.
Quando chegámos ao aeroporto de Hong Kong o meu pai estava sorridente, e foi precisamente aquele sorriso que me fez sentir um arrepio de ligeiro arrependimento na espinha quando ele me me diz ao ajudar-me a pegar na mala que "finalmente aprendeste a fazer malas filha!! Esta está super levezinha! Como é que conseguiste?"
Ao que respondi entre-dentes,
- pois está...
A expressão do meu pai mudou ligeiramente e voltou a perguntar-me como é que eu tinha conseguido tal proeza, porque a mala estava de facto anormalmente leve. Aqui pensei que já era tarde demais para voltar atrás e se eu mostrasse qualquer arrependimento seria muito pior para mim, e por isso continuei;
- ah...ora então.... A mala está muito leve, porque está vazia. Vazia quer dizer, trouxe a minha escova de dentes e uma muda de roupa interior.
- Como?????
- pois então...eu achei que se querias tanto que eu viesse a Macau era porque me querias oferecer umas roupitas novas, e como vamos ficar só uma semana, e tu tás sempre a reclamar comigo porque encho as malas de tralha e ficam super pesadas e que já pagaste excesso de peso uma vez, pronto....resolvi fazer assim.
- Tu estás a gozar comigo???
- Não....
- Olha...vamos mas é embora e quando chegarmos a Macau conversamos sobre isto.

O meu irmão ficou incrédulo com a minha insolência, e na realidade eu também. Enquanto ele me dizia que não compreendia como é que eu tinha tido coragem de fazer aquilo, eu pensava que provavelmente o melhor seria estar com os meus amigos de forma repartida e em sitios diferentes, para que ninguém notasse que eu iria estar com a mesma roupa durante uma semana e meia.
E assim foi...(felizmente, apenas) durante dois dias. Após um longo silêncio, o meu pai veio ter comigo para me dar os parabéns e umas "pataquitas para ires comprar umas roupas. Mas vais comprar umas roupitas boas, não aqueles trapos com que às vezes andas". E a seguir rimo-nos os dois, como nunca me tinha rido com ele. Perdoou-me a insolência depois de ouvir a minha explicação, e assumiu que se calhar tinha pensado mais nele do que em mim.


Depois de me relembrar destas e de outras histórias, passei à frase que dizia que "o psicólogo William Ickes, da Universidade do Texas, montou uma rede de conversas entre raparigas e rapazes com irmãos mais velhos, e entre aqueles que conviviam com irmãos do sexo oposto, a conversa fluiu melhor. O facto de terem um irmão mais velho dá às mulheres uma maior capacidade para falar e relacionar-se com pessoas do sexo masculino".
A verdade é que tive um longo periodo da minha vida em que os meus amigos eram mais homens do que mulheres, e inevitavelmente acabei por ser muito "maria-rapaz". O meu irmão ensinou-me a subir aos longos muros da nossa vivenda, a trepar às árvores, e queria que eu o acompanhasse a fazer cross pelos trilhos da Quinta da Marinha. Quando eu lhe dizia que podia esfolar os meus joelhos, ele encolhia os ombros e mostrava-me como se fazia. Uma das últimas tentativas em converter-me numa autêntica rapaz-maria, foi através do bodyboard. Pediu uma prancha emprestada a um amigo dele, teve cerca de uma hora explicar-me como é que eu entrava dentro de água e apanhava a onda. Assimilei tudo de tal maneira, que quando vi a primeira onda a proximar-se, remei como se não houvesse amanhã, e enquanto me senti a deslizar dentro de água, observava a cara estupefacta do meu irmão a olhar para mim e a gritar palavras aplaudidas. No meio do meu entusiasmo, a onda enrolou-me de tal maneira que achei que nunca mais viria à tona de água. Depois de ter sido necessário um amigo dele vir-me buscar para eu perceber que estava completamente atordoada e a entrar mar adentro, percebi que estava na hora de começar a fazer pelo menos uma amiga.


Segundo investigações italianas, "os irmãos mais novos têm menos risco de ter asma ou eczemas.(...) as crianças mais novas estão expostas a um número maior de infecções dos outros irmãos e isso fortalece o seu sistema imunitário."
Meia verdade. O meu irmão teve de facto asma, mas sou eu que tenho períodos de terríveis comichões que me deixam as mãos cheias de pequenas borbulhinhas que tendem a subir pelo braço acima. E em termos de constipações, não me lembro da última vez que vi o meu irmão com o nariz entupido, enquanto que eu, contabilizo umas duas por ano...


"São os filhos mais velhos que sofrem punições mais rigorosas, porque (...) os pais esperam assustar os mais novos e levá-los a evitar os mesmos erros".
Tivemos muita sorte em relação a este ponto, porque os nossos pais sempre nos trataram de forma muito igual. Talvez por isso, muitas pessoas tivessem achado durante tantos anos, que éramos gémeos.


Tivemos percursos muito diferentes. Enquanto ele se interessava pelos legos e bebia literalmente todas as palavras das revistas do National Geographic sobre tubarões, eu desenhava casinhas e "roubava" saias, blusas e lenços à minha mãe para recriar as roupas que a Tieta usava. Enquanto ele revelava pouca paciência para a escola, eu queria ser a melhor, e tive dias e dias a treinar sozinha para saber ler antes de entrar para a primeira classe.
Eu queria sempre ver filmes novos, enquanto que ele abarbatava o comando do vídeo e punha em repetição a Triologia do Star Wars. E mais uma vez, já não me lembro bem sob que extensos argumentos, me convencia a ver e a rever os filmes, e as naves, e o Luke Skywalker. Provavelmente sob o pretexto de que o herói do filme também tem o papel de salvar a irmã. No dia em que me recusei a ver pela vigésima vez a malfadada saga, eis que ele descobriu o Never Ending Story. E a minha relação com o a televisão só mudou, no dia em que eu aprendi a mexer no vídeo.

Houve uma altura em que os nossos caminhos se cruzaram, e andámos exactamente na mesma turma, a estudar exactamente o que nenhum de nós queria. Ele sonhava com a aviação, e eu sonhava com as artes. E ainda que só uns anos mais tarde, ambos conseguimos realizar os nossos sonhos. Muitas foram as vezes em que o tentei convencer sem sucesso a ajudar-me a fazer maquetes, e muitas foram as vezes em que ele me tentou convencer também sem sucesso a andar dentro de um teco-teco a sobrevoar Portugal. Mas a ideia de pôr um dedinho que seja, dentro de um avião, deixa-me completamente aterrorizada, e quando tem mesmo de ser, é sob receita médica.

Mas, apesar das diferenças, sempre estivemos lado a lado, e por vezes sinto saudades dos dias em chegávamos a casa e informávamo-nos telepaticamente que um de nós tinha algo que queria contar ao outro. E a pergunta que surgia de imediato era, "para o teu quarto ou para o meu?". Graças a estes desabafos e confidências, aprendemos muitas coisas um com o outro, e há um pensamento que ele me ensinou, que trago comigo até hoje. "Às vezes é preciso dar dois passos atrás, para se conseguir dar um à frente."

De todas as vezes que conduzo até casa da nossa mãe, e passo pelas imediações do aeroporto, revivo as vezes que ali passo com o meu irmão para ele olhar os aviões que chegam a Lisboa, e a insignificante velocidade a que ele guia para me explicar quais os procedimentos que os pilotos deverão estar a ter naqueles momentos. E quando estou sozinha, como hoje, reparo sempre, se já chegou o momento de pôr cá para fora o trem de aterragem.

Graças a ter um ter um irmão mais velho, sou três pontos menos inteligente que ele, e sou mais humorada. Tenho maior capacidade de me relacionar com pessoas do sexo oposto, e supostamente tenho uma saúde mais forte. Estatísticas à parte, de uma coisa tenho a certeza. Foi a existência dele que me ajudou a ultrapassar a terrível timidez com que nasci. Lembro-me que durante muitos anos tinha tanta vergonha de falar com as pessoas, que pedia ao meu irmão para o fazer por mim. Até para pedir um copo de água. E felizmente, ele um dia disse-me: "Mana, tens de aprender a fazer as coisas sozinha. Quem tem boca vai a Roma, por isso se queres, pede tu."

Tudo seria muito diferente, se fosse eu a irmã mais velha.....por isso, pai, mãe, amigos e amigas.....se sou como sou....."A culpa é do (meu) Mano".