segunda-feira, 27 de julho de 2009

Número 61 (2009)

Aula de Desenho

Há dias descobri a Fábrica do Braço de Prata sob pretexto de uma conversa aberta sobre Ilustração Científica.
Foi acima de tudo uma lição de desenho. Uma lição, que na verdade começou em 1998, durante o ano que passei na Sociedade Nacional de Belas Artes. Desenhei muito pouco até a essa data, talvez por timidez, ou por ter na ideia, que para desenhar, era preciso ter uma espécie de talento genial ou divino. Ignorava por completo, que o desenho também se aprende, e estando certa da falta de divindade nos meus traços, fui-me deixando ficar nas minhas águas serenas, com o barco atracado ao porto.
Inicialmente, tudo me era estranho, e surpreendeu-me o facto de aprendermos a desenhar pessoas. Pensava que íamos começar por objectos ou por naturezas mortas, mas não. E mais surpreendente ainda, pessoas despidas. Senti algum incómodo, até porque um dos modelos vinha conviver com os alunos no intervalo, completamente despido, sem ainda conhecer ninguém, e a pedir cigarros. Um dia ouvi uma colega dizer-lhe;
- É melhor vestires o robe, senão ainda te constipas!
Dentro da sala de aula, olhava para ele de esguelha, pensando que jamais conseguiria estar completamente nua à frente de uma dezena de pessoas a fixarem-me, a observarem todos pormenores do meu corpo imperfeito, para me passarem para um papel. Ao fim de três ou quatro aulas, esse preconceito desvaneceu-se com a familiarização com o modelo, com as suas imperfeições que deixavam de exisitir, porque eram elas, afinal, os pontos interessantes, eram elas os desafios, que me permitiam aperfeiçoar o meu traço, o meu desenho, e sobretudo o treino dos meus olhos que aprenderam o que era observar.

Quando terminei este curso, sentia-me capaz de continuar esta grande lição na Universidade, pela Arquitectura, e embora as aulas que nos foram facultadas me tivessem desiludido um pouco, consegui um envolvimento incrível com o desenho durante uma viagem a Itália que fiz em Março de 2000. Foi a minha maior produção de desenhos até hoje, a grande maioria dentro da Academia de Belas Artes de Florença. Finalmente conseguia orgulhar-me do meu traço, da minha sensibilidade outrora reprimida pela minha timidez. Regressei a casa com um sorriso estampado na alma, e muito agarrada àquele diário gráfico, até ao dia em que a minha professora me disse que não me avaliava, se eu não entregasse todos os meus desenhos originais. Com muita apreensão e insatisfação, obedeci, porque ela não me deu alternativa.

Oito anos se passaram e ainda não sei onde estão os meus desenhos. Aqueles desenhos que me abriram a alma. Nunca mais os vi, nem à professora. E durante todo esse tempo, nunca mais fui capaz de desenhar livremente. Penso que me contentei (temporáriamente) com as linhas no estirador, de régua e esquadro, muito rigorosas e perfeitas, ainda que com pouca emoção. Durante todos esses anos, senti falta do meu diário que me foi roubado, mas nunca mais pensei em produzir outro. Não devia ter-me deixado afectar por isso, eu sei. Não devia existir nada que justificasse virar costas a algo que nos apaixona, por causa de outra pessoa, e no fim, sermos nós, os únicos a perder com isso.

Desde que aceitei que o meu diário me fosse roubado, fui aceitando perder uma série de outras coisas, ainda que sem consciência disso. Perdi noites inteiras, sem dormir, por causa dos trabalhos desproporcionados da faculdade. Perdi ainda mais noites em ateliers, por causa de projectos sem fim, com os olhos cheios de lágrimas por já não suportarem a luminosidade do monitor. Perdi inúmeros fins de semana em que deveria ter estado na praia, na exposição, no jardim, a viajar, a namorar, mas tive de ir trabalhar. Perdi paz e ganhei ansiedade, porque o ritmo nunca abrandava. Fui-me cansando dos ordenados anoréxicos, e das responsabilidades obesas, e questionei-me, porque é que eu, era a última pessoa que estava a tirar partido da minha própria vida....?

E um dia, regressei à Universidade, pela Ilustração, para tentar reencontrar o motor daquele meu barco, que esteve à deriva em alto mar durante tantos anos.
Foi naquela conversa aberta sobre Ilustração Científica, que retomei a minha aula de desenho, outrota interrompida. Ouvi histórias e ensinamentos de quem desenha todos os dias. De expedições feitas por este País fora para registar a fauna e a flora locais, e aprender com a troca de técnicas e experiências. De como os chineses evoluem os seus desenhos ao ponto de conseguirem desenhar um Galo com apenas três traços. Que o importante é treinar, e desenhar as vezes necessárias para se conhecer bem um determinado objecto, animal, ou pessoa. Que no traço não existe limite, nem barreira, e durante esta conversa, relembrei-me que quando eu desenho, sou livre.

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