terça-feira, 7 de setembro de 2010

Número 69 (2010)

Religião


Uma das coisas que sempre me fez confusão neste mundo são os fanatismos. Sobretudo os religiosos.
Acredito na convivência harmoniosa entre convicções distintas. Talvez por ter crescido num território que atravessava (e ainda hoje atravessa) uma total aceitação das diferentes religiões, onde pude sempre entrar num templo budista ou numa igreja católica sem que ninguém me abordasse ou questionasse.
Cresci com os principios católicos, mas passei muitos momentos perto dos deuses das fés alheias. Gostava dos jardins, dos incensos, das estátuas, e que me adivinhassem o futuro, ainda que as traduções não me permitissem perceber muito do que me queriam dizer.
Só me recordo de ter praguejado uma vez contra um ritual religioso. Subia no elevador do meu prédio em Macau, já de madrugada, serena com os cocktails que tinha acabado de beber, encostada ao frio do aluminio das paredes que me elevavam até ao décimo nono andar, quando de repente oiço um estrondo ensurdecedor que abalou o elevador de uma ponta à outra. Agarrada às paredes, percebi ao fim de poucos segundos que aquele estrondo, era o início do rebentamento de uma série de panchões para espantar os maus espíritos de alguma casa para onde alguém se teria acabado de mudar. Praguejei porque o meu coração quase parou. E porque só estava habituada a assistir a estes rituais de espantar os maus espíritos, nas inagurações de espaços comerciais durante o dia. Nunca me tinha apercebido que também era normal fazê-lo de madrugada... e dentro de um prédio.

Quando vim viver para Lisboa também fiquei feliz quando constatei que essa convivência pacífica também existia.
A minha mãe tem um amigo que cortava o cabelo num cabeleireiro muçulmano. E invariavelmente, quando ele se sentava na cadeira pronto para ser atendido, o senhor que lhe cortava o cabelo, pedia-lhe alguma paciência para esperar uns minutos, porque precisava de rezar a Allah. Nunca eram uns meros minutos, mas o amigo da minha mãe superou essa espera uma, duas, três, quatro vezes....., até ao dia em que decidiu levar uma Biblia debaixo do braço para a quinta sessão.

Quando finalmente chegou a hora de cortar o cabelo depois de uma longa espera, abriu a sua Biblia e pediu encarecidamente ao senhor Muçulmano que desta vez tivesse ele paciência para esperar que ele fizesse a sua oração a Jesus.
Aquela foi a sua vingança, a sua provocação. Dali em diante, depois de uma grande discussão, acordaram um novo horário, e o respeito permaneceu. Selaram o compromisso com um abraço porque os muçulmanos não bebem alcoól e os portugueses não brindam com água.


Quando a Catarina descobriu um costureiro que aceitava fazer arranjos mais elaborados a preços que nós estudantes, podíamos pagar, fiquei feliz da vida, por ter de volta um luxo que aparentemente só conseguia em Macau. Chamava-se Billo. Era oriundo da Guiné Conakri e queixava-se da mulher que tinha lá ficado, que era muito gorda, e precisava de arranjar outra mulher cá. Queria aprender português "como deve ser" e perguntava-nos se lhe poderíamos ensinar. Em casa dele.
Um dia pedi-lhe que me apertasse umas calças e quando as fui buscar pedi-lhe para as experimentar, porque as anteriores não tinham ficado bem, e embora ele não tivesse essa facilidade no seu mini espaço dentro das Galerias Almirante, acedeu ao meu pedido. Improvisou um vestiário com alguns panos compridos e teve a amabilidade de colocar um tapete no chão para que eu não sujasse os meus pés. Entre o despir as calças que tinha vestidas para experimentar as que tinham sido arranjadas, vi-me de novo agarrada à parede e aos panos, porque alguém literalmente me puxou o tapete. Era o Billo. Muito aflito, pediu-me desculpas, mas precisava do tapete que era de um amigo que tinha de rezar a Allah naquele preciso momento. Apertei os lábios para que as minhas gargalhadas não saissem do vestiário e acabei por nem conseguir experimentar as calças. Saí com as bochechas quentes e disse que estava tudo óptimo.
Aquela seria a última vez que o ia ver, porque quando lá voltei, ele tinha-se mudado para o Cacém, e não deixou a morada.


Ontem tocaram à minha campainha.
Nunca tenho por hábito abrir a porta de casa a estranhos, mas ontem a abordagem pareceu-me bastante inofensiva e um tanto curiosa.
No momento em que uma das senhoras viu a minha cara, deu um passo em frente ficando demasiado perto de mim. A outra acompanhante estava cabisbaixa, não sei se de vergonha ou se de falso respeito.
E a conversa começou,
- Não sei se já ouviu falar do Fim do Mundo, certamente que já ouviu, porque ultimamente fala-se muito nisso, e eu gostaria de saber o que pensa à cerca do assunto..
- Mmmm......sim, consta que há umas pessoas que acreditam nisso, mas eu não penso nada à cerca do assunto, não me diz muito.
- Pois mas se há muitas pessoas a falarem disso, é porque pode acontecer, e todos nós queremos ser salvos, não é verdade?
- Queremos? Pois talvez....
- A menina é religiosa?
- Eu sou religiosa, sim.
- E é praticante?
- Eu tenho a minha religião, e pratico-a à minha maneira.
- Então mas não quer conversar um pouco connosco sobre os seus valores, as suas cre..
- Sinceramente não! Eu respeito a religião alheia, a sua, a de qualquer pessoa, mas não tenho muita vontade de discutir ou dissertar sobre isso.
- Então mas podiamos trocar umas ideias, conv...
- Agradeço a atenção, mas sinceramente não quero mesmo conversar sobre isso. Respeito a sua opinião e as suas crenças, e vou-lhe pedir que respeite as minhas..
- Então mas não acha que se o Mundo pode acabar não temos de nos unir todos e tentar enfrentar essa calamidade com toda a fé e conv...
- Mas eu já lhe disse que não acredito nessa história do Fim do Mundo...
- Então, mas diga-me...a menina gosta de ler....? É que eu posso-lhe facultar aqui umas leituras sobre este tema e outros que pod...
- Ouça...vamos lá a ver...em relação ao Fim do Mundo eu não sei, mas vamos ter com certeza o Fim da Picada se esta conversa continua...! Não quero mesmo conversar sobre isso. Um bom dia para si.

E a outra senhora não tirou os olhos do chão..
Fechei a porta e ri-me.
Há três coisas que não discuto;
Futebol, porque não percebo absolutamente nada. Sou dos poucos seres neste País que não tem clube, e sou feliz assim.
Política, porque também não percebo absolutamente nada do que se anda a fazer. Voto sempre porque é a minha obrigação. E também sou feliz assim.
Religião, porque acredito em todas.
Só não acredito em fanatismos.

Sem comentários: