segunda-feira, 21 de março de 2011

Número 3 (2004)

Génio Incompreendido


Ontem deitei-me muito cedo, coisa rara em mim, mas o cansaço era grande e as aulas começavam bem cedo. Como sempre.

Acordei - e eu que nem costumo ter um acordar assustador - olhei-me ao espelho e vi algo que julgava não padecer. Olheiras. Olhei para a minha mãe, apontei timidamente para mim, e disse:



- Vês porque é que deitar cedo não resulta comigo?
- Tu és mesmo.....as desculpas que tu me arranjas...vai lá despachar-te para as aulas que eu vou fazer-te o pequeno-almoço, sim?

Ri-me para dentro, e depois do aconchego à barriga, caminhei pela minha rua feia até ao metro, de sorriso nos lábios e óculos escuros, porque nunca se sabe quem se pode encontrar logo cedo, de manhã.

É no momento em que começo a avistar a Rua do Ar Líquido que meto o turbo, porque estou quase sempre atrasada e nem me lembro qual é a sensação de andar na rua a pastelar. Desligo os "fones" e entro o mais silenciosamente possível na sala de aula. Hoje, particularmente, interrogo-me se entrei na sala certa.

- Olha lá...o que é que se está a passar aqui hoje?

- Apresentações! E acho que hoje também apresentas.... não sabias?

Petrifiquei por breves segundos, porque não sabia mesmo que hoje era o meu dia de apresentação. Não tinha trazido a maquete - na realidade raramente trago, porque estes professores esquecem-se que nem todos andamos de carro até à faculdade, e as dimensões dos territórios em estudo, são sempre fora de escala em relação aos autocarros - e ontem dei-me o dia de folga para opinar arquitectonicamente sobre as casas que o meu amigo ia ver, na esperança de encontrar a perfeita para alugar.

Há alturas em que durante o processo conceptual de cada projecto, preciso realmente de tirar um dia ou dois para me ligar à realidade. Acho que é uma forma de a contrastar com as utopias que nos ensinam ou que nos passam pela cabeça, e porque em última instância, gosto de vaguear de um lado para o outro, conversar, aprender com o dia-a-dia e com o que me espera no mundo lá fora.

Por volta das onze da manhã entrou ofegante, um dos nossos colegas que praticamente derrubou, com a sua maquete de dois metros e qualquer coisa, uma colega que estava de saída. Era evidente que não tinha dormido, e depois de vislumbrarmos os pormenores da bem dita maquete, concluimos o porquê da noite em claro. Quando ele terminou de montar o estaminé, pensei no quão doloroso é fazer uma apresentação de directa, e dirigi-me para junto dele, porque em caso de pânico ou tendência para embrulhar as palavras, poderia ser que eu me lembrasse de dizer qualquer coisa para o ajudar.
Ao fim de muitos blá blá blá, deram ordem de soltura ao rapaz e viemos cá fora fumar um cigarro.



- Ai minha nossa, achas que os professores disseram muito mal?
- Por acaso não achei. Mas achei que não falaste muito do trabalho propriamente e imagino que seja porque não dormiste....?!?
- Ai ai.....olha.....eu ontem fui só ao bar de uma amiga minha e disse que era só uma visita de médico e não sei como, cheguei a casa às sete da manhã com seis whiskies e fiquei a pensar no que raio tinha eu de importante para fazer hoje....ai....nunca mais faço isto....eu não aprendo! É sempre assim...De cada vez que há uma apresentação marcada, sou invadido por uma preguiça enorme. Lembro-me sempre que tenho mil coisas para fazer - desde que não seja o trabalho! - depois na última semana parece que ando numa maratona, e de véspera, em vez de dormir descansadinho....não! Vou sair até às quinhentas, depois ando para aqui que nem me aguento.....
- Vamos voltar lá para dentro, enquanto eu vou pensar numa maneira de me esquivar sorrateiramente a apresentar o meu trabalho hoje....

Assim que fechei a porta da sala, percebi que irrompíamos numa conversa em que o professor tentava explicar o que são os génios incompreendidos:


- Meus amigos...esta coisa de vir para aqui para as apresentações com um molho de papéis todos desorganizados, ainda que com uns desenhos espectaculares, mas que nem vocês próprios compreendem, tipo génio incompreendido, não me convence! E sabem porquê? Porque os génios incompreendidos não existem! Um génio é precisamente alguém que transmite qualquer coisa que chega a todas as pessoas, ou que a grande maioria compreende, senão, não seria um génio...certo????


Decididamente entrei na sala certa, porque ouvir isto foi um alívio. E talvez das grandes lições universitárias que tive até hoje.

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