Há dias fui tomar café com uma conhecida. Como a grande maioria das conversas que tenho tido ultimamente, o tema descaiu para a situação profissional que parte da nossa geração atravessa. A dada altura, ela dizia-me que o colega dela estava pouco habituado a ouvir as neuras do chefe - que diz frequentemente exaltado que está tudo mal feito - porque não vinha da área das artes. Porque nós, passámos os anos todos da faculdade a ser altamente criticadas pelos nossos professores, e já estávamos portanto, habituadas. A minha alma irritou-se. Passei de facto todos os anos da Faculdade a engolir muito desaforo, na maioria muito pouco construtivo, e hoje apercebo-me que todos esses anos foram, em grande percentagem, uma enorme instrução e preparação para a exploração laboral que se adivinhava sem eu dar conta disso. Para mim e para muitas das pessoas da minha geração. Este tem sido o tema fulcral das minhas conversas de café, com o desespero que muitas pessoas me apresentam perante a sua condição laboral. E não começaram só agora, com a chamada crise.
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- Então vieste-te embora porquê?
- Porque supostamente entrei a ganhar dois ordenados mínimos, um deles através do centro de emprego, com o estágio profissional, e estou lá há três meses a receber 200 euros por mês.
- Mas eles não te tinham dito que te davam um ordenado mínimo e o centro de emprego te dava outro?
- Sim....mas agora já estavam a dizer que ia ser muito complicado darem-me um ordenado mínimo, e entretanto saí porque descobri que a minha chefe nem tinha posto os papeís ainda, e com certeza não ia pôr.....
- Mas como é que é possível contratarem uma pessoa à base do subsidio do estágio profissional e ainda nem entraram com o processo no centro de emprego?
- É possível! E acontece frequentemente! E sabes o que a fulana ainda me disse quando anunciei que me ia embora?
- O quê?
- “Já vi que você não abre as perninhas!”
- O quê???? Ela disse disso?
- Sem qualquer constrangimento...
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- sabes...eu agora percebo melhor porque é que vais sair....
- ai sim?
- Sim...tu queres ter filhos e uma família...e aqui não dá..
- Essa é uma das razões...e é duro de digerir, porque nunca imaginei que trabalhar fosse incompatível com uma vida para além de....
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- Vou-te contar uma que até te passas...
- O que é que aconteceu?
- Ontem fui chamada para uma reunião com o meu chefe de estágio que se virou para mim e me disse que se eu não trabalhasse mais horas, que não me assinava os papéis de finalização do estágio para a Ordem....
- Como???
- Exactamente isso que ouviste.....se eu não trabalhar mais horas ele não me assina os papéis e todos estes meses de estágio vão por água abaixo....
- Mas isso é chantagem!
- Jura?
- Quanto é que ele te está a pagar?
- Cento e cinquenta euros por mês, sendo que a segurança social são cento e cinquenta e cinco euros e quando uma vez lhe disse isto, ele respondeu-me que estava a ganhar mais do que ele, que ainda não tinha ganho nada desde que abriu o novo atelier... Portanto...na perspectiva cínica dele, eu sou uma sortuda que se recusa a dar ainda mais horas de borla das que já dou ao atelier...
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- Como é que correu a reunião?
- Nem vais acreditar....Eu tive de fazer um esforço muito grande para me conter, acredita....Começaram por criticar o meu trabalho, e a justificar isso para eu ser mandada embora, a dada altura saltou-me a tampa, e eu referi que o meu trabalho tinha sido bastante elogiado pelos outros sócios, e pedi-lhes que fossem um pouco mais coerentes no que me estavam a dizer. Às tantas começaram a perder argumentos e admitiram-me que tinham deixado de me dar trabalho de propósito, e que afinal não era porque eu fazia as coisas mal, que me tinham mudado para a sala dos fundos da empresa com apenas uma secretária, sem computador, durante um mês, para ver se eu quebrava e saía por minha iniciativa...
- Não acredito......
- Acredita...Eu fiquei passada...mas pelo menos admitiram as coisas, e eu fiquei mais aliviada por perceber que afinal trabalho bem e sou uma pessoa muito competente – palavras da senhora que oficialmente me despediu – mas que não me podem ter lá mais porque há falta de trabalho...
- E era preciso torturarem-te e desconsiderarem o teu profissionalismo para te despedirem por falta de trabalho?
- Pelos vistos é assim que funcionam....e não são os únicos....sabes o que fizeram noutro sítio a uma amiga minha?
- O quê?
- Despediram-na nas vésperas do casamento dela, e como se não bastasse, quando ela chegou de lua-de-mel, já tinha as coisas todas empacotadas por alguém e outro fulano a ocupar a mesa dela...
- As pessoas andam-se a passar de vez...agora a crise é desculpa para comportamentos sórdidos no trabalho...
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- Sabes o que é que a minha chefe me disse?
- O quê?
- Opá....a empresa está a desenvolver uma série de acções junto de várias escolas, e claro que isso vai ter de ser feito ao fim-de-semana, e como já é habitual, não vamos receber um único tostão por isso...Como o meu marido também trabalha ao fim-de-semana, pedi à minha chefe para ficar com as escolas perto de minha casa para poder levar a minha filha comigo, porque não tenho ninguém que fique com ela...Sabes o que ela me respondeu? “Ai....se você vestisse a camisola na empresa como veste no seu papel de mãe, com certeza que as coisas corriam melhor para si.”
- Mas ela estava a querer dizer o quê? Que se deixasses de tomar conta da tua filha como deve ser, te aumentava o ordenado? Desde quando é que há comparação entre um filho e um trabalho, ainda por cima para trabalhar horas extra sem receber?
- É este o País onde vivemos...
- Quanto é que tu ganhas mesmo, se não é indiscrição?
- Cerca de 800 euros limpos.
- A tua chefe tem filhos?
- Tem.....mas nunca está com eles, e acha isso perfeitamente normal...
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- Queres saber da última?
- Conta...
- O meu chefe anulou-me os meus recibos verdes sem me dar qualquer satisfação...
- Como assim?
- Então...estou a passar recibos há oito meses, e ele hoje chegou ao escritório com os meus últimos três recibos anulados por ele, e que ainda por cima já foram pagos, e diz que agora vai ser assim, continuamos a receber por mês o nosso ordenado, mas passamos um recibo único no final do ano.
- Mas isso é ilegal!
- Claro que é! E esta é apenas uma das muitas ilegalidades que ali se passam...
- E os teus colegas, como é que reagiram?
- Os meus colegas? Para eles está tudo bem! Eu sou a única anormal que acha isto um escândalo...mas se ninguém refila o que é que EU vou fazer?
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- Que tal foram as férias?
- Um stress..
- Porquê?
- Ao fim de uma semana de férias no Norte, recebi um telefonema do meu chefe a dizer-me que tinha de largar as férias para voltar ao trabalho. Quando me pus a caminho, ele ligou-me outra vez a dizer que afinal já não era preciso e que podia aproveitar a outra semana que ainda me restava, mas entretanto, eu já estava de regresso...Posto isto, pensei que podia ir até à Costa Alentejana, e passado um dia de lá estar, ele ligou outra vez a dizer que afinal era preciso vir trabalhar. Peguei novamente nas coisas e novamente regressei a Lisboa, e no dia em que cheguei, ele ligou outra vez a dizer que já não era preciso. Como era Quinta-Feira, peguei em mim e fui visitar a minha familia para fora outra vez, e quando lá cheguei ele voltou a ligar a dizer que afinal tinha de ir mesmo, e que agora é que é... quando cheguei a Lisboa, liguei-lhe para perguntar se tinha de estar mais cedo no escritório e ele responde: “Desculpa, mas afinal já não é preciso, fui-te ligando porque és a única que tem de ser sempre avisada com antecedência, porque os teus colegas estão sempre disponíveis para quando é preciso, mas podes curtir mais o fim-de-semana”
- Mas o fulano é doido?
- Não sei se é doido, mas claramente acha que o mísero ordenado que me paga é sinónimo de disponibilidade de 24 horas por dia e de manda e desmanda na minha vida..ainda que eu esteja de férias...
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- Sabes uma coisa?
- O quê?
- Não me lembro de qual é que foi a última vez que a minha família se sentou toda à mesa para jantar...
- Como assim?
- Não me lembro de qual foi o dia em que o meu pai chegou a casa do trabalho antes das dez da noite ...
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- A minha agência propôs-me um trabalho fabuloso!
- Ah que bom! Que trabalho é que é?
- Há uns tipos que vão fazer umas agendas para vender por toda a Europa, e querem introduzir umas ilustrações. E não é que a minha Agência entrou no seguinte esquema: Quem quiser participar, trabalha de borla, mas vê o seu nome e o seu trabalho promovido!
- O quê? Mas isso não faz sentido nenhum...ainda por cima para um produto que é para vender!
- Óbvio que não faz! Mas o pior é a minha Agência que alinha nisto! Eles são burros que nem uma porta, porque ganham com o trabalho dos agenciados e estão a propor-nos trabalhar de borla....Com isso eles também não recebem e nem percebem! E ainda por cima propõem isto a pessoas com muitos anos de experiência de trabalho! O que é que acontece? Os putos que sairam agora da universidade agarram isto, não são pagos por nada, e assim continua o ciclo do trabalho de borla!
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- Ando-me a passar com o meu trabalho.....
- Porquê?
- Pelas condições...Lembro-me que quando comecei a trabalhar ali, dava o meu máximo, trabalhava não sei quantas horas por dia, porque aquela empresa avalia o nosso desempenho pelas horas que as pessoas ficam dentro do escritório e não pelo trabalho que produzem – há lá gente que fica 10 horas por dia em que metade do tempo está literalmente a jogar às cartas no computador ou no Messenger - e passei um ano a ser ignorado com as minhas propostas, o meu supervisor não consegue definir prazos de entregas dos projectos, aquilo é uma desorganização completa, passo o tempo a ter de fazer ginásticas de tempo e energia, e quando o meu tio faleceu, ainda por cima nas condições em que foi, ninguém mostrou apoio ou solidariedade comigo naquela empresa, obrigaram-me a tirar férias, quando podiam perfeitamente ter-me dado alguns dias, e ainda porcima nem me deram subsidio...
- Mas como é que isso das férias funciona? Não estás a recibos verdes?
- Estou, mas tratam-me como se fosse contratado, ou melhor, para o que lhes convém. Somos todos obrigados a tirar férias em Agosto – o que é por si só uma ilegalidade – e dão um subsidio de quatrocentos euros nessa altura – que é inferior ao ordenado mínimo – e o que me disseram, quando lhes pedi o subsidio porque fui obrigado a tirar férias, foi : “não abrimos excepções, ainda que a sua situação seja uma situação excepcional. A única coisa que podemos fazer, é deixá-lo tirar férias agora, mas o subsidio só em Agosto” Isto não é gozar com a minha cara? Ainda por cima eu precisei de viajar por causa disto e não foi para apanhar sol...
- Pois....não tenho palavras sinceramente....
- Mas sabes o que é que me revolta mais? É que um gajo tenta mudar as coisas e afirmar uma postura de não aceitar determinados tratamentos e é boicotado pelos próprios colegas que acham que tudo está bem e nem dão conta da série de ilegalidades que acontecem dentro da empresa. E quando dão conta, vivem com medo, e eu nem sei de quê...metade daquela gente vive à mama dos pais, não tem filhos, não tem casa para pagar, portanto não precisa....
- Ui...nem vamos por aí...nós temos o que merecemos.... Eu só aceito essa postura de quem tem família para sustentar..e sinceramente revolta-me mais a pacifidade dos nossos colegas do que as barbaridades dos chefes, e juro-te que não entendo...Toda a gente se queixa, mas quando chega a altura de agir, fica tudo quietinho no seu canto...e pior...é que as raridades que não aceitam estas coisas, são ostracizadas e postas de parte!
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- Consegui um lugar em Macau! Estou tão contente!
- Acredito que sim! Fico com muita pena que te vás embora, mas fico muito feliz por ti, porque este País está uma desgraça!
- Pois está...sabes qual foi a última oferta que recebi?
- Qual?
- Eu já fiz o estágio, já fiz mestrado fora de Portugal, e os tipos propunham-me (convém relembrar que eu vivo em Lisboa e o trabalho era em Sintra) nada mais nada menos que 200 euros por mês de ordenado....
- 200 euros por mês? Mas isso nem dá para transportes e comida!
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- Eu tenho vontade de regressar, tenho imensas saudades de Portugal, mas alguma vez na minha vida iria ganhar o que ganho lá fora? Nem ao fim de vinte anos de trabalho chegava onde já consegui chegar!
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(na presente data) Dos meus amigos próximos e alguns conhecidos:
- 8 emigraram.
- 17 estão desempregados ou em 1º ou 2º estágio não remunerado sem perspectiva de ficar integrados.
- 21 recebem menos de 800 euros mensais, e vivem maioritariamente com os pais ou contam com a ajuda deles.Trabalham frequentemente mais do que oito horas por dia e fins-de-semana.
- 4 têm um rendimento mensal incerto que pode ir dos zero ou à considerada média nacional.
- 11 estão integrados na faixa dos mil euros, maioritariamente a trabalhar entre 10 a 12 horas por dia, sem qualquer pagamento de horas extraordinárias. Alguns recebem formação contínua subsidiada pela empresa.
- 4 recebem acima da média nacional, têm um horário regulado pelo código de trabalho e recebem as horas extraordinárias que lhes são solicitadas. Recebem formação subsidiada pela empresa.
- 2 estão em cursos subsidiados.
- 3 estão inscritos em mestrado.
Quando me pus em frente daquele ecrã gigante para ele me tirar uma fotografia, nunca imaginei que ao ver como eu tinha ficado, surgissem aquelas palavras em concreto, enquanto eu esboçava o meu melhor sorriso. Foi precisamente neste momento que me caiu a ficha.
Vamos continuar a boicotar os nossos colegas de trabalho que ousam discordar do extenso rol de ilegalidades laborais porque muitos de nós passamos, que ousam dizer que não admitem ser explorados, quando há chefes que dizem que todos temos de estar no mesmo barco, e que temos de vestir mais a camisola, não para a empresa crescer e ganharmos todos mais prestigio e melhor ordenado, mas para que possam continuar a obra da casa de férias, ou para simplesmente nos poderem usar como escudo da sua própria falta de competência e organização.
Vamos todos continuar a contribuir para este ciclo vicioso, vamos todos continuar a achar que quando alguém reclama um direito, não temos nada a haver com isso, enquanto não podemos esquecer que a alimentação desta atitude nos tem dado cabo dos sonhos (que começam a ser irreais) que todos temos, de ser reconhecidos pelo nosso trabalho, ter uma casa, uma família, um seguro de saúde, um carro, e férias duas vezes por ano.
Lá fora de Portugal é que é bom?
Depende do lá fora, mas com menos frequência acontece com certeza, as pessoas enxotarem para debaixo do tapete, os problemas dos outros como se não fossem problemas deles também.
Porque haveria de ser o nosso trabalho justamente reconhecido e de acordo com as leis do código de trabalho, se todos nós achamos que o bom bom, é pagar tudo baratinho, ou não pagar de todo, ou pagar depois...??? Se queremos pagar baratinho, temos de receber baratinho. Somos a Geração Low Cost, e já que somos incapazes de lutar contra esta realidade, o melhor é começarmos a assumir isso.
5 comentários:
Amiguita, cada vez acho mais que um dia estas tuas histórias vão acabar num livro... Devias pensar nisso seriamente!
Beijocas,
Rórró
Sabes bem amiga... Isto é real, bem vinda a Portugal...
P.S.- Eu também tinha umas boas peripécias para contar em relação a esse tema...lololol...beijos1
Portugal no seu melhor!
Uma vez quando trabalhava na Autoeuropa aleijei-me num dedo, quase não o conseguia mexer. Fui á enfermaria, deram-me um comprimido para as dores e disseram - Pode ir! - e eu perguntei, posso ir onde? Trabalhar! Respondeu o senhor. E eu disse, mas eu tenho o dedo todo f*****! Ao que o senhor respondeu - Eu posso dar baixa mas depois qaundo for para renovar isso vai pesar!
És - não desfazendo ninguém - a gaja mais gira de Lisboa!
Caro anónimo,
Nunca fui muito boa a receber elogios, mas perante este, não podia simplesmente inclinar a minha alma envergonhada e caminhar dois passos para o lado.
E sendo assim: Obrigada.
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