quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Número 46 (2008)

A vida num segundo

Há momentos na vida, em que percebemos perfeitamente que tudo pode mudar drasticamente em apenas um segundo. E quando percebemos que tivemos a sorte de isso não nos acontecer, algo muda dentro de nós.
Num destes Domingos solarengos, depois de fazer o meu circuito de bicicleta pela Quinta das Conchas - o segundo maior "pulmão" verde de Lisboa - regressei a casa decidida a fazer uma nova peça de roupa com a ajuda da minha nova máquina de costura.
Carreguei as linhas, experimentei alguns pontos no tecido que ia usar, tudo como mandam nas instruções - que por sinal, eu leio sempre.

Arregaçei as mangas e pus-me ao trabalho. Pressionei o pedal suavemente, para garantir que controlava o que estava a fazer.
Estranha e repentinamente, senti uma picada intensa no meu olho direito, seguido de um estalo seco e estridente.
Ou o estalo seco e estridente aconteceu primeiro?

Parei. Olhei para a agulha e estava partida. Faltava-lhe um bocado, e rapidamente o meu corpo transpirou suor em pânico. Caminhei devagar até à sala, e perguntei à minha mãe se havia alguma agulha espetada no meu olho.
Nada. Felizmente. Deixei-a intrigada com tal pergunta e regressei à minha cadeira.
Demorei cerca de três segundos a perceber que via bem de ambos os olhos.

O alívio foi tremendo, embora ainda não tivesse entendido muito bem, o que realmente se tinha passado.
Olhei de novo para agulha e o fragmento continuava desaparecido.
Encolhi os ombros e cedi à ideia de que nada de extraordinário tinha sucedido.
Dirigi-me ao meu armário e encontrei os meus óculos apropriados para construção civil. Sentei-me, substitui a agulha, coloquei os óculos e continuei.
Acho que sofri temporáriamente do efeito tremendo da Negação.
Olhei para o que estava a fazer e não conseguia focar a vista. Senti uma tontura. Da tontura veio a dor de cabeça aguda.
Respirei fundo, dirigi-me ao espelho para observar melhor o meu olho. Via manchas, estrelas, mas felizmente nenhuma agulha.
Vesti o casaco e reagi. Pedi ao meu irmão que me levasse ao hospital.

Depois de explicar o acontecimento do dia à senhora do balcão de informações, e observar o ar estarrecido dela a olhar para mim, sentei-me na sala de espera com o meu irmão que mexia no telemóvel para fazer de conta que não estava num hospital.
Chamaram-me à triagem, e colocaram-me uma pulseira onde estava escrito o meu nome e a causa do acidente: "Violência".
Violência? Será que o software usado neste hospital não contempla a opção Acidente? Ou a gerência do Hospital também assume que os objectos também são potenciais agressores?

Caminhei por corredores, elevadores e corredores, no labírintico e gigante Hospital de Santa Maria, e finalmente cheguei à sala de espera da ala de Oftalmologia, em assumidas obras de remodelação, e assustadoramente vazia. Tinha uma campainha com umas coisas escritas, mas nesta altura, eu não conseguia ver quase nada, tal não era a dor de cabeça e falta de focagem de que sofria. Ninguém apareceu e resolvi bater à única porta existente.

- Ouça lá, não leu o aviso? Toca à campainha e espera que alguém apareça!
- A senhora é médica?
- Sou, porquê?
- Por nada, mas à partida existe uma boa percentagem de pessoas que quando vem à oftalmologia de urgência, à partida é porque não vê bem, ou não vê de todo, e eu estou, espero que temporáriamente, incluida no pacote. E não. Não consigo ler o que está ali escrito.
- Então espere que eu já a chamo.

A preocupação com o meu olho era tal, que nem consegui praguejar direito esta mulher, que deve ter mais ou menos a minha idade mas nem a jovialidade lhe evita o feitio azedo. Já para não falar do profissionalismo, que hoje em dia parece ser um pré-requisito proibido nesta cidade.
Uma pessoa socorre-se do hospital porque algo de errado se passa, o que por si só, já é suficientemente desconcertante e ter de enfrentar este (mau) tratamento é demais.
E como se não bastasse, fui atendida precisamente por esta avantesma, que não me explicou o que eu tinha, reclama comigo porque não consigo manter o olho aberto por causa do holofote insuportável do microscópio que me foi apontado sem que sequer estivesse preparada, ordena-me que fique com o olho tapado durante 48 horas e manda-me embora. Fazendo uma conta muito rápida, devo ter ficado ali dentro menos de cinco minutos, e nem houve hipótese para expor qualquer dúvida que tivesse. Não havia mais ninguém à espera, nem lá dentro nem cá fora. Não compreendo porque fui literalmente corrida dali para fora.
Até os pedreiros têm mais consideração pelos tijolos do que esta médica pelos seus pacientes.
Não me conseguia lembrar do caminho de volta, e descobri que a falta de uma vista, pelo menos de forma repentina, altera a noção das distâncias. E antes que lá ficasse de vez por bater com a cabeça nalgum lado, liguei ao meu irmão para vir ter comigo.

Por estas e por outras, ao longo destes 10 anos lisboetas, aprendi a incluir no meu feitio, o espírito de desconfiança, e marquei uma consulta num hospital privado, que se revelou fundamental para a minha saúde ocular. Acabei por perceber que tinha escapado à cegueira permanente, porque tive a sorte de ter sofrido um embate paralelo da agulha no meu olho. Se tivesse batido perpendicularmente, tinha-se de facto, espetado e eu ficaria cega de um olho. Fiquei com uma lesão na retina, que não tinha sarado completamente ao fim das tais 48 horas, e se não me tivesse socorrido de uma consulta particular, tinha ficado até hoje com a irreversabilidade da lesão.

No total, foi uma semana em casa, a olhar para a parede, e de vez enquando para a televisão, porque uma vista só, cansa-se mais do que duas juntas.
Só Deus sabe como passei essa semana, porque nem eu própria tenho grande ideia. Não fiz rigorosamente nada. Não tinha capacidade para fazer.
Não entrei em grandes tristezas, apenas preocupação. Inquietação, talvez.
Como tudo poderia ter mudado radicalmente na minha vida.
Como uma ideia tão banal e inocente, poder-se-ia ter tornado na pior ideia de sempre. E se tivesse perdido uma vista? A resposta que encontrava, era nula. Um grande vazio. Um grande nada.

Nas instruções da máquina de costura, nenhuma frase alerta para a protecção da vista.
Na escola, ninguém nos ensina que na realidade, quando se vai ao hospital, muitas vezes temos de estar preparados para lidar com o nosso problema juntamente com a possível bestialidade do médico.
E ninguém se atreve a instaurar um decreto regulamentar que defina os mecanismos de avaliação do desempenho dos médicos, por parte dos pacientes.
Existe o livro de reclamações, é um facto. Mas a fragilidade com que se entra num hospital não permite que tenhamos a força necessária para reclamar do que quer que seja.

O meu olho sarou.
O meu susto também.
Não passei a viver como se não houvesse amanhã, mas passei a andar na rua com a marcha muito mais lenta. Sem ziguezaguear por entre as pessoas de passo apressado.
Agora sei, ainda que tenha sido temporáriamente, o que é viver com uma incapacidade. E sei também a sorte que tenho em poder usufruir de algo tão natural, mas que muitas vezes me escapa à vista.
Ver com os dois olhos.

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