quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Número 51 (2008)

Turismo

A minha amiga brasileira esteve em Lisboa.
Veio para a Europa visitar lugares antigos e lugares que até aqui não tinha conhecido, em busca do reencontro consigo mesma após longos meses de trabalho exaustivo num banco.
Ela foi demitida.
Deu tudo por tudo, esperando aprender tudo o que conseguisse, e receber o prémio que qualquer trabalhador na empresa onde ela estava recebe, ao fim de um ano a trabalhar dezoito horas, durante 7 dias por semana, e 4 semanas por mês.
Exausta, foi chamada à direcção onde lhe disseram que não poderia continuar, mas que talvez a chamassem mais tarde. Explicaram-lhe que por vezes acontecia os trabalhadores sairem antes de receberem o tal prémio (bastante dinheiro, mesmo sendo em Reais) e que ela estava a ser demitida porque não tinha perfil para o cargo que ocupava.
Saiu despedaçada, com muito menos quilos, e sobretudo com falta de luz no rosto.

Olhei para ela, e revi-me quando terminei o meu estágio, onde trabalhei horas e horas a fio, dias e dias seguidos, sem qualquer descanso, sem obter qualquer valorização de todo o esforço que fiz, a troco de poder ingressar na Ordem dos Arquitectos, e cento e cinquenta euros por mês.

Conheci esta amiga na Alemanha, numa viagem que fiz para a visitar outra amiga (portuguesa) que estava a estudar em Tuebingen, perto de Estugarda. Eram colegas de residência. Ela sorria sempre e cozinhava para nós em alternativa ao conterrâneo brasileiro, que era vegetariano e só cozinhava massa se tivesse pesto.
Esta viagem à Europa, veio do desejo de fazer qualquer coisa com o dinheiro que recebeu nos últimos meses e que nunca teve oportunidade de gozar. Revisitava Tuebingen, e ainda conhecia Lisboa e Barcelona, onde podia continuar a rever amigos feitos lá, na Alemanha. Veio também, para pensar que rumo profissional quer escolher, e ensinou-me muitas coisas sobre mercados financeiros. Gostei de a rever, e tive em mim um desejo imenso de lhe mostrar alguns recantos da minha cidade que eu tanto amo, e quero sempre que os meus amigos de outros países, de outras linguas, amem também.

Levei-a a lugares onde nunca vou normalmente. Os lugares mais turisticos, os lugares que eu penso que qualquer pessoa que não conhece Lisboa, tem de ver primeiro.
Apercebi-me que esta é uma questão, no minimo peculiar. Eu vivo aqui, e só visito estes lugares, e muitas vezes pela primeira vez, quando algum amigo estrangeiro me visita.
Porque será que isto acontece?

Começo a olhar mais atentamente para os eléctricos que passam e para as lojas de artesanato português porque algum turista tem a máquina fotografica apontada para estas nossas coisas típicas.
Começo a perceber a real importância do turista na nossa cidade.
Reconhecemo-la melhor, os seus ex-libris e os sitios de destaque, porque os turistas existem.
Valorizamos frequentemente o nosso património porque os turistas se sentem curiosos em relação a eles. Não sei se será apenas uma coisa portuguesa, mas a verdade é que muitos de nós nunca subiram ao Elevador de Santa Justa, nem entraram no Mosteiro dos Jerónimos, ou se tal aconteceu, foi porque no 5º ano a nossa professora organizou uma visita de estudo até lá.

Vivemos a nossa cidade de acordo com o sitio onde trabalhamos, de acordo com a casa onde vivemos, e vamos aos sitios onde os nossos amigos vão. E se os nossos amigos decidirem ir sempre aos mesmos sitios, é exactamente aí onde estamos. Mas raramente, esses sítios são os mesmos onde os turistas vão. Neste momento não sei se o café debaixo de minha casa é menos importante que o Padrão dos Descobrimentos. Talvez nos agarremos aos nossos recantos mais íntimos, porque os turistas não vão lá, e isso siginifica que não sendo turístico, é aquela parte da cidade de que nos apropriamos e consideramos só nossa.

Estive dois dias com a minha amiga. No primeiro, relatei o que conheço da nossa cidade, que afinal até é muito pouco.
No segundo dia, convidei-a a fazer parte de um dia normal das minhas rotinas. Levei-a a comer uma sapateira em Ribamar a caminho da festa de anos de outra amiga. Ela entrou na festa como se fizesse parte daquele nosso mundo, onde lhe contei onde conheci aquela família. Das férias passadas na Ericeira, e na Carregueira. Das jantaradas e risadas onde chegávamos a ser vinte adolescentes a invadir a casa desta família com direito a filhos, pais, avós e bisavós. Das petiscadas durante toda a tarde, em frente à piscina, ou a tocar guitarra e a cantar. Não foi uma daquelas conversas em que apenas uma pessoa se entusiasma com o assunto, porque as pessoas de quem eu lhe falava, estavam quase todas presentes. Ela podia ver os sorrisos, os gestos e perceber porque gosto tanto deles.

No fim do dia, de regresso a Lisboa, ela disse-me:
- Sabe que esse foi o dia que mais gostei até agora em Lisboa?
- A sério?
- Sério! Foi tão legau! É muito mais interessante conhecer as pessoas, ir nos lugares onde voçês vão, sem aquela coisa de turista, comer o que voçês comem, e ver como vocês convivem.

Missão Cumprida. Ela gostou de Lisboa. Talvez se tenha conseguido apropriar um pouco dela, em vez de lhe passar simplesmente ao lado.
Viva este novo conceito de Turismar.

Sem comentários: